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“Minha vida é uma constante luta entre o real e a imaginação”

April 13, 2019 Leave a comment

Certo dia, ele diz isso em voz alta, como se fosse uma frase absolutamente trivial e comum de se dizer. Caio não endereça a frase a mim: quase como uma profecia, solta essa frase do nada e para o nada, resultado de um pensamento que raras vezes é tão lúcido ou tão organizado. Uma frase que, dois anos depois, dá título a esse texto e ainda é completamente atual.

        Caio não é psicólogo, psicanalista, muito menos lacaniano. Caio era na época um menino de 9 anos que, coincidentemente, diz uma frase que representa toda uma teoria da psicose. A vida de Caio realmente é uma luta entre o real e a imaginação, ou o imaginário, como é mais certo de se dizer. Foracluido o simbólico, Caio tem que muitas vezes escolher entre ficar no real ou aderir ao imaginário, colando-se aos significantes que são caros para ele.

        O primeiro significante de Caio que eu presenciei foi Sonic. Sonic, para quem não conhece, é um personagem de um jogo de vídeo game da Sega, lançado em 1991. Ele é um ouriço azul meio humanoide, que possui velocidade supersônica, e precisa impedir o vilão Robotinik de conquistar o mundo usando as “esmeraldas do caos”. Sonic tem seus melhores amigos (Tales, Amy) e seus inimigos (Robotinik e Metal Sonic).

        A identificação de Caio com Sonic foi muito aderente, e seu mundo virou o mundo do Sonic. Chamava seus amigos da escola de Tales e Amy, lutava sem cessar contra Robotinik e apelidou Vitor, uma criança autista de quem ele não gostava, de Metal Sonic. Era constantemente perseguido pelos vilões da história, tentava bater no Vitor toda chance que tinha e saía por aí atrás das esmeraldas do caos antes que Robonitik as achasse.

        As pessoas ao seu redor não aguentavam mais ouvir falar do Sonic e até o proibiam de tocar no assunto. Caio ficava muito chateado e bravo, principalmente quando tentavam dizer que o Sonic não existia. Como dizer para um menino que pensa que é um ouriço azul super veloz que ele não existe? A recomendação para nós, acompanhantes escolares, era a de que não podíamos incentivar esse tipo de fantasia e tínhamos que trabalhar no sentido de separar o mundo real e o mundo da imaginação. Não foi o que fizemos.

        Todos os dias no intervalo brincávamos de Sonic: escondíamos esmeraldas pela escola e escrevíamos dicas de onde elas poderiam estar, permitindo que Caio brincasse e falasse sobre Sonic o quanto ele quisesse, exercendo também a leitura e aprendendo a ler melhor. Percebemos que essa era a maneira que Caio conseguia falar de si, naquele momento a única maneira possível para ele. Silenciar o Sonic era o mesmo que silenciá-lo, assujeitá-lo, e isso nós não podíamos fazer.

        Caio começa a trazer outros elementos de outros jogos e filmes de que gostava. Para dizer que iria sentir saudades dos amigos, pois iria mudar do período da tarde para o da manhã, diz que estava com medo de “cair no vale do esquecimento”, artifício que traz do filme “divertidamente” para falar sobre saudades e sobre o medo de ser esquecido pelos colegas. Me diz também que eu sou “muito alegria”, enquanto ele é “mais raiva”, coisa que também traz do mesmo filme e permite que entenda melhor sobre os sentimentos. Passa a poder falar do que sente e das suas angústias através disso, fala sobre seus pesadelos e medo de fantasmas através do “senhor da escuridão”, vilão de um vídeo game antigo chamado Rayman. Me pergunta muito sobre meus pesadelos e do que eu tenho medo antes de dormir, e diz frequentemente que acha que meu pai é o senhor da escuridão.

        É também através dos jogos e filmes que Caio começa a entender o tempo e como ele funciona. Interessa-se muito pela data de lançamento dos filmes da Disney, sempre me perguntando se eu ou o outro acompanhante nascemos antes ou depois do lançamento de tal filme, se a mãe dele nasceu antes ou depois, etc. Também usa a época dos filmes para fazer comparações com hoje ou antigamente, reparando se o filme era de uma época em que “não tinham carros e nem prédios” ou se era mais atual.

        Tivemos a ideia de fazer uma linha do tempo dos filmes, e passávamos boa parte do tempo na escola fazendo uma pesquisa no celular sobre os filmes que ele conhecia e suas datas de lançamento. Caio, que antes não conseguia nem fazer diferença entre dias da semana e meses (“que dia é hoje Caio? – Fevereiro”), passa a se inserir na lógica do tempo cronológico a partir de uma pesquisa própria suscitada pelos seus interesses pessoais.

        Sonic foi ficando para trás e Caio começa a trazer outras identificações. Certo dia me pergunta muito angustiado e aflito se ele era um humano ou um gato, ao qual eu respondo que ele era um humano e ele se organiza e fica muito aliviado. Depois, descobrimos que ele ficava em dúvida sobre ser um gato porque sua mãe o chamava de “meu gatinho”. Tivemos uma época em que Caio achava ser dragão, nos dava nomes de dragão e éramos parte da gangue dos dragões da escola. Outra época, ele fugia da cruela cruel, que ia pegá-lo para transformá-lo em casaco caso ele não cumprisse todas as tarefas da escola (e de fora da escola também).

        Tivemos uma longa época do Fortnite, um jogo de tiro que o irmão de Caio jogava e ele de vez em quando assistia. Caio ficou absolutamente fissurado, só falava disso e ai de quem falasse mal do jogo favorito dele. Morria de medo do Ômega, um vilão do jogo que era um robô, e lutava contra ele durante as aulas, jogando bombas e se tornando muito forte.

        Quase dois anos depois de Caio dar início aos recursos simbólicos de que lança mão para poder falar de si, Caio, aos 11 anos, identifica-se com a figura do demônio. Ele começa a se interessar por um antigo desenho (ele gosta de coisas bem antigas) chamado “Bendy”, do qual também há um jogo, “Bendy and the Ink Machine”. No desenho antigo, Bendy é um demônio bonzinho, que faz biscoitos de gengibre e coisas do tipo. Na maioria dos desenhos, são os outros que pregam peças em Bendy e o deixam chateado por ter sofrido uma espécie de bullying. Nos jogos atuais de Bendy, ele muda de figura: Bendy é o personagem principal de um jogo de terror bem perturbador. Caio não só assiste pessoas jogando esse jogo no youtube, como encontra vídeos perturbadores do Bendy com músicas pitorescas e muita violência: animações de pessoas se cortando com serras elétricas e músicas com letras do tipo “I need you to kill me, I need you to destroy me”. Em português: “Eu  preciso que você me mate, eu preciso que me destrua.”

        Caio identifica-se com a figura do demônio e oscila muito entre ser um menino bonzinho que faz tudo certo na escola e quer aprender muito; e ser um menino maldoso que gosta de pregar peças e fazer mal aos outros. Quando está bem, fica muito doce, carinhoso e nos diz que hoje vai aprender muito, fica muito focado nas tarefas e quando cansa é capaz de dizer que está cansado e não quer mais fazer exercícios, que quer dar uma volta, que o dia está demorando muito a passar, pega livros na biblioteca para ler ou desenha no seu caderno de desenho.

        Em seus momentos de maior desorganização, Caio bate nos colegas, nos professores e nos ATs, agarra as pessoas e fala para falarem suas últimas palavras antes de morrer, ameaça a cortar a garganta de todos com uma faca e colocar fogo na escola. Diz que quer ser um menino mau e quer que todo mundo morra, grita no meio da sala “eu vou te matar um dia, você vai ver” ou “eu odeio Jesus”. Em casa, Caio briga com o irmão frequentemente e diz em voz alta e olhando para uma faca na cozinha que vai pegar uma faca para matá-lo, assustando seus pais. Chega até a agredir a mãe, coisa que nunca imaginaríamos que poderia fazer.

        O que fazer quando uma identificação imaginária torna-se perigosa? Que garantias nós temos de que as ameaças não se tornarão realidade em um momento sério de desorganização?

        Caio traz essa identificação em um momento crucial da escola: o sexto ano. Os dias ficaram mais longos e com mais aulas, os professores são especialistas e nem todos sabem lidar com as dificuldades de Caio em sala de aula. As crianças estão crescendo, criando laços mais fortes, fazendo suas “panelinhas”, entrando na adolescência e tendo os primeiros namoricos. Caio cada vez se vê mais isolado e deixado para trás, pois não acompanha os colegas nem nas tarefas da escola e nem socialmente.

        Sempre vimos as identificações de Caio como uma maneira de falar de si, mas também como uma maneira de explicar para si mesmo o por quê de ser tão diferente das outras crianças. Se sou diferente, é porque sou um ouriço ou quem sabe um gato. Suas aderências imaginárias vem como forma de delírio para dar uma resposta a um real inexplicável, à angústia de ser diferente mas não saber no quê e nem porquê. Caio não pergunta o que ele tem. Não pergunta porque ele tem duas pessoas que o acompanham na escola. Não quer saber porque suas tarefas são adaptadas e porque as pessoas o tratam com condescendência. Caio prefere ser dragão, ou demônio.

        Será que não é hora de darmos um significante para que Caio possa falar sobre si? Um significante que poderá representá-lo de maneira mais segura do que o demônio? Ou isso seria matar a espontaneidade e criatividade de Caio para elaborar suas próprias questões dentro daquilo que é possível para ele?

        Pensamos que talvez seja possível dar um significante-diagnóstico para ele. Contar que suas dificuldades têm uma razão de ser, uma explicação que vá além do “você precisa de ajuda para se organizar de vez em quando”. Quem sabe, fazer uso da palavra “autista” por mais que para nós não seja o caso. Não sabemos, mas sabemos que precisamos descolá-lo da ideia do demônio e que essa ideia vem para dar resposta ao enigma “o que eu sou?”

Esse capítulo não tem fim porque não temos uma resposta.

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